“EU NÃO TOCO COM A MINHA VAGINA!”

Riot Grrrl: feminismo, rock podreira e publicações independentes (Foto: Brad Sigal)

Por Paula Holanda

É quase consensual que os anos 70 foram o auge do punk. Afinal, trata-se da década de surgimento e explosão de ícones como Ramones e The Clash, simultaneamente à façanha dos Sex Pistols de conquistarem solos americanos (e incomodarem líderes britânicos) com um único álbum de estúdio, a análise não poderia ser diferente. Proporcionalmente à popularidade de uma subcultura que englobava mantras de rebelião, power chords agressivos e tendências de moda ditadas por Vivienne Westwood e Malcolm McLaren, as ideologias anarquistas e antifascistas cresciam de maneira abrupta. As práticas de estilo “faça-você-mesmo” (como a customização de camisas e a confecção de fanzines, por exemplo), essenciais ao desenvolvimento do mercado independente, firmavam-se cada vez mais entre seus seguidores.

Ao decorrer dos anos, “ser punk” já não mais se resumia apenas a escutar e acompanhar dezenas de bandas do gênero, muito menos a usar coturnos, moicanos coloridos e jaquetas cobertas com patches. Tratava-se de um modo de pensar e agir; tal qual uma filosofia de vida. Não se tratava apenas de odiar instituições como a família, a escola ou a igreja, mas também o capital, a hierarquia e o nazifascismo.

Em suma, o punk agrupava música boa, roupas maneiras e ideais progressistas. A princípio, parecia um movimento perfeito; mas ainda faltava um fator essencial: as mulheres. Sim, é de conhecimento geral que, na década de 70, Nancy era tema de conversação durante seu relacionamento com Sid; também é sabido que Joey compôs inúmeras canções dedicadas à Linda. No entanto, o espaço fornecido para mulheres ativas como compositoras e empresárias (e não apenas como parceiras sexuais ou musas inspiradoras), era escasso. Não havia protagonismo, muito menos igualdade. E não adianta citar Patti Smith ou Joan Jett como exemplos: uma indústria que dava destaque a três ou quatro intérpretes mulheres para cada centena de bandas formadas por homens não se tratava de uma indústria igualitária.

Illustração por Matt Groening para o episódio “Love, Springfieldian Style” (2008)

Novos protagonismos

Até o fim da década de 80, as raras vagas oferecidas para mulheres em bandas integradas por homens resumiam-se à posição de vocalista ou, no máximo, de guitarrista base, geralmente em subgêneros mais leves. A crença de que mulheres não sabiam solar ou tocar baixo e bateria (na época, considerados “instrumentos masculinos”) ainda era bastante popular. Foi na década de 90, com a ascensão do grunge, que a mudança desse contexto tornou-se mais aparente. Tornou-se visível o aumento da notabilidade de bandas com garotas ocupando um outro papel que não o de frontgirl, como Smashing Pumpkins, que contava com a baixista D’arcy Wretzky, e Sonic Youth, com Kim Gordon na guitarra e no baixo. Foi nesse período que uma grande transformação se deu em relação à presença das mulheres no meio underground, através do movimento Riot Grrrl (ou Riot Girl).

Como organização inclusiva, o Riot Grrrl (do inglês, “riot” = revolta; “girls” = garotas; e “grrr” = onomatopéia indicativa de ira) não teve líderes, mas costuma ter seu pioneirismo creditado à Allison Wolfe (Bratmobile), que nomeou o movimento, e Kathleen Hanna (Bikini Kill), que era considerada a porta-voz do mesmo. Teve seu início em 1991, quando grupos de mulheres de Washington, D.C. e Olympia, inspirados pelos recorrentes protestos antirracistas, decidiram se rebelar em reivindicação aos direitos femininos. Kathleen, juntamente com a baterista Tobi Vail, lançou “Bikini Kill”, um fanzine sobre política, punk rock local e pautas feministas.

Para impulsionar a divulgação da revista, a dupla formou uma banda de mesmo nome e chamou Kathi Wilcox para integrá-la como baixista. Em seus shows, as garotas ordenavam que os homens se direcionassem às fileiras do fundo e que as mulheres se aproximassem do palco para receberem fanzines e folhas com letras de música. Kathleen costumava se apresentar com o corpo riscado com palavras que incitavam violência contra a mulher, como “slut” (“vagabunda”) e “rape” (“estupro”). Pouco a pouco, as bandas de peso formadas por mulheres, além das composições e publicações independentes abordando e explicitando tabus como estupro, incesto e distúrbios alimentares multiplicaram-se, imersas em uma cultura inspirada pelas garotas do Bikini Kill.

Texto e colagem por Kathleen Hanna, originalmente publicado como manifesto para o segundo volume do zine “Bikini Kill” (1991)

O segundo volume do fanzine de Kathleen e Tobi continha um manifesto que abominava padrões de gênero e sexualidade, valorizava a expressão artística feminina e clamava que mulheres visavam criar, publicar e facilitar a divulgação de trabalhos destinados a outras mulheres. Em sua maioria, os textos e canções permaneceram no meio underground, visto que a grande mídia, na época, repudiava mulheres rebeldes e independentes. Protestos relativos a lesbianismo, racismo e gordofobia também eram comuns na corrente. No Brasil, tivemos representantes como Dominatrix, Pulso e Bulimia. O movimento foi de suma importância para a participação feminina na história da música, inspirou inúmeras artistas posteriormente e destilou a cultura do “faça-você-mesmo” no âmbito feminino. Afinal, era tudo independente: as bandas, as publicações e, principalmente, as mulheres.

Fotografia de Bikini Kill em Washington, D.C., por Brad Sigal (1991)

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