THE ARRIVAL E A ARTE DE SHAUN TAN

Imagens retiradas do próprio livro (por Shaun Tan)

Por: Vanessa Vergne

Aos amantes de quadrinhos, ilustração e artes visual, a obra do famoso ilustrador e autor australiano Shaun Tan: The Arrival, mostra-se bastante interessante.

O álbum conta a história de um imigrante que sai de sua cidade natal, deixando sua família para ir a um outro lugar. A história é bem clichê, quando se pensa em histórias que abarcam essa temática de imigração, no entanto, a forma como ela é conduzida pelo autor que impressiona.

O livro demorou cinco anos para ser feito, partindo de motivações pessoais de Shaun, e lembranças de parte da história de sua família. A narrativa tem um ritmo lento, e foi toda desenhada a mão, apenas com tons de cinza e sépia, o que dá uma impressão de coisas antigas, álbuns de fotografia.

Os aspectos gráficos são de impressionar, desde a construção dos personagens até fotos que sugerem movimentos. A ausência de traços ao redor das imagens, bem presentes em quadrinhos de heróis, dá um teor realista ao desenho. A concepção de todo o universo fantástico em que a história se passa, com criaturas estranhas, munidas de estéticas que dialogam com o grotesco. São lugares que ora lembram cidades comuns, ora remetem a cenários de filmes de ficção científica e Sci-fi.

A paleta de cor usada, é um recurso bem recorrente quando se trata de contar histórias que remetem a coisas antigas, memórias, e um pouco incomum quando se observa a trajetória das obras de Shaun, que tem uma forte ligação com a pintura e o recorrente uso de cores. A escolha da paleta cromática, além de ter casado muito bem com a temática e a atmosfera criada pela história, foi utilizada como uma estratégia de cortes de custos na produção do livro, já que ele seria produzido de forma independente pelo próprio autor.

A trajetória do personagem principal é contada sem nenhum tipo de fala, ou legenda, somente por imagens, com um ritmo de leitura lento, que exige um certo empenho contemplativo, de maior observação. Essa característica da narrativa, proporciona ao leitor uma ênfase no potencial de expressão do autor, muito conhecido por tentar transformar sensações e sentimentos em figuras.

A arte é muito sensível, e nos leva mesmo a entrar no universo da imigração, e das experiências materiais e sensoriais vividas por uma pessoa que sai de um lugar, rumo a um outro completamente desconhecido, deixando sua família para trás.

É possível fazer referência, a todo tempo, a momentos decisivos na formação de nações e grandes Estados ao redor do planeta, já que o fluxo migratório é um fato permanente na história do mundo. Quando há tragédias, fome, genocídios, guerras, haverá sempre pessoas que vão e vem, a procura de um lugar, de se encontrar, de um novo ideal, novas possibilidades, ou apenas para fugir. O mais importante mesmo nesse livro é mergulhar na narrativa e deixar as sensações fluírem através das imagens que são, realmente, incríveis.

“EU NÃO TOCO COM A MINHA VAGINA!”

Riot Grrrl: feminismo, rock podreira e publicações independentes (Foto: Brad Sigal)

Por Paula Holanda

É quase consensual que os anos 70 foram o auge do punk. Afinal, trata-se da década de surgimento e explosão de ícones como Ramones e The Clash, simultaneamente à façanha dos Sex Pistols de conquistarem solos americanos (e incomodarem líderes britânicos) com um único álbum de estúdio, a análise não poderia ser diferente. Proporcionalmente à popularidade de uma subcultura que englobava mantras de rebelião, power chords agressivos e tendências de moda ditadas por Vivienne Westwood e Malcolm McLaren, as ideologias anarquistas e antifascistas cresciam de maneira abrupta. As práticas de estilo “faça-você-mesmo” (como a customização de camisas e a confecção de fanzines, por exemplo), essenciais ao desenvolvimento do mercado independente, firmavam-se cada vez mais entre seus seguidores.

Ao decorrer dos anos, “ser punk” já não mais se resumia apenas a escutar e acompanhar dezenas de bandas do gênero, muito menos a usar coturnos, moicanos coloridos e jaquetas cobertas com patches. Tratava-se de um modo de pensar e agir; tal qual uma filosofia de vida. Não se tratava apenas de odiar instituições como a família, a escola ou a igreja, mas também o capital, a hierarquia e o nazifascismo.

Em suma, o punk agrupava música boa, roupas maneiras e ideais progressistas. A princípio, parecia um movimento perfeito; mas ainda faltava um fator essencial: as mulheres. Sim, é de conhecimento geral que, na década de 70, Nancy era tema de conversação durante seu relacionamento com Sid; também é sabido que Joey compôs inúmeras canções dedicadas à Linda. No entanto, o espaço fornecido para mulheres ativas como compositoras e empresárias (e não apenas como parceiras sexuais ou musas inspiradoras), era escasso. Não havia protagonismo, muito menos igualdade. E não adianta citar Patti Smith ou Joan Jett como exemplos: uma indústria que dava destaque a três ou quatro intérpretes mulheres para cada centena de bandas formadas por homens não se tratava de uma indústria igualitária.

Illustração por Matt Groening para o episódio “Love, Springfieldian Style” (2008)

Novos protagonismos

Até o fim da década de 80, as raras vagas oferecidas para mulheres em bandas integradas por homens resumiam-se à posição de vocalista ou, no máximo, de guitarrista base, geralmente em subgêneros mais leves. A crença de que mulheres não sabiam solar ou tocar baixo e bateria (na época, considerados “instrumentos masculinos”) ainda era bastante popular. Foi na década de 90, com a ascensão do grunge, que a mudança desse contexto tornou-se mais aparente. Tornou-se visível o aumento da notabilidade de bandas com garotas ocupando um outro papel que não o de frontgirl, como Smashing Pumpkins, que contava com a baixista D’arcy Wretzky, e Sonic Youth, com Kim Gordon na guitarra e no baixo. Foi nesse período que uma grande transformação se deu em relação à presença das mulheres no meio underground, através do movimento Riot Grrrl (ou Riot Girl).

Como organização inclusiva, o Riot Grrrl (do inglês, “riot” = revolta; “girls” = garotas; e “grrr” = onomatopéia indicativa de ira) não teve líderes, mas costuma ter seu pioneirismo creditado à Allison Wolfe (Bratmobile), que nomeou o movimento, e Kathleen Hanna (Bikini Kill), que era considerada a porta-voz do mesmo. Teve seu início em 1991, quando grupos de mulheres de Washington, D.C. e Olympia, inspirados pelos recorrentes protestos antirracistas, decidiram se rebelar em reivindicação aos direitos femininos. Kathleen, juntamente com a baterista Tobi Vail, lançou “Bikini Kill”, um fanzine sobre política, punk rock local e pautas feministas.

Para impulsionar a divulgação da revista, a dupla formou uma banda de mesmo nome e chamou Kathi Wilcox para integrá-la como baixista. Em seus shows, as garotas ordenavam que os homens se direcionassem às fileiras do fundo e que as mulheres se aproximassem do palco para receberem fanzines e folhas com letras de música. Kathleen costumava se apresentar com o corpo riscado com palavras que incitavam violência contra a mulher, como “slut” (“vagabunda”) e “rape” (“estupro”). Pouco a pouco, as bandas de peso formadas por mulheres, além das composições e publicações independentes abordando e explicitando tabus como estupro, incesto e distúrbios alimentares multiplicaram-se, imersas em uma cultura inspirada pelas garotas do Bikini Kill.

Texto e colagem por Kathleen Hanna, originalmente publicado como manifesto para o segundo volume do zine “Bikini Kill” (1991)

O segundo volume do fanzine de Kathleen e Tobi continha um manifesto que abominava padrões de gênero e sexualidade, valorizava a expressão artística feminina e clamava que mulheres visavam criar, publicar e facilitar a divulgação de trabalhos destinados a outras mulheres. Em sua maioria, os textos e canções permaneceram no meio underground, visto que a grande mídia, na época, repudiava mulheres rebeldes e independentes. Protestos relativos a lesbianismo, racismo e gordofobia também eram comuns na corrente. No Brasil, tivemos representantes como Dominatrix, Pulso e Bulimia. O movimento foi de suma importância para a participação feminina na história da música, inspirou inúmeras artistas posteriormente e destilou a cultura do “faça-você-mesmo” no âmbito feminino. Afinal, era tudo independente: as bandas, as publicações e, principalmente, as mulheres.

Fotografia de Bikini Kill em Washington, D.C., por Brad Sigal (1991)